O sol mal havia rompido a névoa quando Zefa abriu a janela da cozinha. O cheiro da terra molhada ainda dançava no ar depois da chuva da madrugada. Aos setenta e dois anos, ela mantinha a mesma rotina de sempre: passar o café coado, alimentar as galinhas e varrer o terreiro.
Lá no alto do morro, vivia Firmino. Homem magro, pele curtida de sol, conhecido por sua roça de milho que parecia nunca falhar. Há décadas, Zefa e Firmino se cruzavam na venda, na missa, nas festas da colheita. Nunca mais que um cumprimento seco.
O motivo da distância tinha raÃzes fundas: na juventude, as terras da famÃlia de Firmino engoliram um pedaço da propriedade que deveria ser de Zefa, por um erro de medição que ninguém quis resolver. Desde então, entre eles havia mais que o rio que cortava o vale — havia um silêncio espesso.
Mas naquele julho, a colheita de Firmino não veio. A seca comeu o milho antes que pudesse encher as espigas. Zefa, da janela, via o homem sozinho no roçado, mexendo na terra dura como quem reza para um milagre que não viria.
Num domingo cedo, ela encheu um balaio com mandioca, feijão e um pote de doce de abóbora. Atravessou a ponte de madeira, o coração batendo rápido como se fosse cometer um atrevimento.
Firmino, surpreso, demorou para dizer qualquer coisa.
— Não precisa, Zefa…
— Precisa sim. — ela interrompeu. — Fartura não se guarda sozinha.
Ele aceitou, mas com o olhar de quem ainda pesava o passado.
Aos poucos, o balaio foi e voltou muitas vezes. Ela mandava queijo fresco, ele devolvia com ovos caipiras. Quando o rio subiu e levou parte da cerca de Zefa, foi Firmino quem chegou com as estacas e o arame, trabalhando até o pôr do sol, sem cobrar palavra ou moeda.
Um dia, já no fim do inverno, Zefa o chamou para tomar café. Sentaram-se na varanda, olhando a fumaça subir do bule. Não falaram da terra perdida, nem do que se passou. Mas, enquanto o vento passava leve pelo milharal vazio, entenderam que o tempo tinha levado o rancor junto com a última chuva.
E, quando Firmino se levantou para ir embora, ela disse:
— Na próxima, traga o violão. Quero ouvir as modas antigas.
Ele sorriu. E foi naquele sorriso, simples como a lavoura que recomeça, que Zefa soube: algumas colheitas levam a vida inteira para amadurecer.